Wednesday, March 21, 2007

Velho Sonhador

Devia ter 87 anos.
As marcas do tempo eram visíveis no rosto. Mas a Alma é que mais sofria.
A vida tinha sido sempre ingrata.
Ele tinha sido sempre um sonhador: o Velho Sonhador.
Queria a Morte, mas ela não chegava.
A dor sorvia-lhe a Vida e ele resistia, mesmo não querendo.
Esta era a última batalha. Querer morrer e não conseguir.
Vencer a Vida era o último desígnio.
Ignorava os lamentos dos outros. Respondia sempre que queria morrer. Mas sorria.
Lembrava-se de ter sido menino. E, depois, só recordava a velhice.
No fundo, tinha sido sempre velho: o Velho Sonhador.
Passava horas e horas a fio à janela e descobria, nas nunca gastas pedras da calçada da rua onde sempre tinha morado, novos segredos.
Sonhava nas dezenas, centenas, milhares de pés que as tinham percorrido.
Para onde iriam? De onde vinham? Que pensavam quando ali passavam?
Depois, bem, depois, pensava em si.
Recordava a vida. Ele dizia sempre que tinha sido ingrata.
Mas porque queria então morrer? A Vida teria sido mesmo ingrata? E quando a Vida é ingrata quer-se morrer?
Lembrou-se então do Dia da sua Vida.
O Dia em que A tinha conhecido.
Como sempre, à noite.
Saíram os dois, abraçados nas tranças da Lua.
E ficaram. E foram ficando. E quiseram ficar para Sempre, juntos.
A noite foi eterna.
Prolongaram os afectos, trocaram estórias que só os dois compreendiam.
Partilharam nomes que apenas os amantes trocam entre si.
Os códigos, os sinais. Outra vez os silêncios.
Ah! Os silêncios!
E deixaram-se adormecer.
Ela, primeiro. Ele, depois de a contemplar.
Ela não acordou mais.
A Vida tinha sido ingrata.
O Velho Sonhador queria morrer.
Esta foi a única noite na Vida deles.

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